Sunday, February 13, 2011

Até já, Guten!

Na zona onde vivi até aos meus 30 anos, mais coisa menos coisa, era comum ver na rua cães. Nem todos usavam coleira mas às vezes, quando usavam, não era sinónimo de terem donos. Sabiamos que muitos eram da rua e portanto eram de todos nós quando o “nós” era alguém que se preocupasse com eles o suficiente para lhes dar comida, carinho ou… uma coleira.
Alguns recordo com saudade: o Caramelo (pelos tons do seu pelo), o Drácula (pelos seus dentes “especiais”), o Bife (um pastor alemão que, segundo se sabe, tinha por hábito roubar bifes) e a Bifana (não consta que roubasse especialmente bifanas mas era uma fiel companheira do Bife e o nome pareceu-nos adequado).


Estavamos em 28 ou 29 de Agosto de 1995 quando a Bifana teve filhotes. Depois de a termos ido resgatar ao canil, apenas um dos caezitos não foi adoptado por ser, talvez, o mais pequeno e frágil. Levámo-lo ao veterinário que nos aconselhou a não nos apegarmos a ele. Estava cheio de lombrigas e dificilmente iria resistir. Foi nessa altura que a mana conseguiu convencer toda a gente a adoptar este cão e assim o Guten juntou-se ao Pantufa como novo membro da família.


No início, por ordem do pai, o Guten dormia numa cama improvisada na marquise do nosso quarto. Esta ordem foi cumprida, sensivelmente, durante cerca de uma hora, até que as luzes se apagaram e a mana o trouxe para a cama onde adormeceram os dois lado a lado. Mais tarde, ao se aperceber da dificuldade em cumprirmos esta ordem durante tooooda a noite, foi-nos dada permissão para deslocar a cama do Guten para dentro do quarto, aos pés da cama da mana. Os resultados não foram por isso mais positivos e, de manhã, como que por magia, o Guten voltava a estar em cima da cama da mana. Várias outras tentativas sucederam sem melhores resultados até que os pais se deram por vencidos e, desde então, o Guten partilhou a cama ora com a mana, ora comigo ora, mais tarde, com a mãe.

À medida que foi crescendo foi também impondo o seu feitio particular. Em relação às dormidas, gostava de ter espaço para se esticar e muitas vezes tentava morder-nos a perna ou o pé sempre que nós nos tentavamos deitar quando ele tinha chegado primeiro à cama. No inverno era certo ouvi-lo a chorar junto à cabeceira da cama, à espera que o deixassemos ir também para debaixo dos lençois. Escusado será dizer que isso não o impedia de resmungar de cada vez que sentia o “seu” espaço invadido. Fazia também parte do seu feitio a forma como amuava sempre que o meu pai ia para a Ericeira e não o levava. Chegava a virar a cara para o lado ou a fingir que não o ouvia e, muitas vezes, a sensação que tinhamos era de que ele, se falasse, estaria a resmungar qualquer coisa como “não falo mais contigo”. É curioso como conseguia perceber o nosso estado de espírito assim que entrávamos em casa e conseguia respeitar o nosso espaço quando sabia que isso era o que precisávamos em dado momento.
O seu feitio particular também chegava para as brincadeiras. O Guten tinha a estranha necessidade de destruir peluches de uma forma metódica e organizada. Basicamente, quando um boneco lhe chegava aos dentes o procedimento era, sempre, o seguinte: primeiro, arrancar o nariz, segundo, arrancar os olhos, terceiro, fazer um furo em qualquer parte, com preferência pelas orelhas, e depois tirar para fora todo o conteúdo existente no interior do peluche.
Adorava brincar ás escondidas connosco. Normalmente uma de nós escondia-se, por exemplo eu, e a outra perguntava-lhe onde estava a Inês. Quando ele estava quase a descobrir-me era altura de a mana se esconder e eu perguntar ao Guten por ela. Esta brincadeira durava até que um de nós se cansasse. Quase sempre, eu ou a mana. Por duas ou três vezes sucedeu algo extraordinário. Quando já estavámos cansadas e dávamos a brincadeira por terminada ele desaparecia. Chamávamos por ele e iamos encontrá-lo escondido debaixo da cama. Às vezes ladrava para nos ajudar a encontrá-lo. Provavelmente sentia que o nosso faro ficava muito aquém do dele e que sem essa ajuda nós acabariamos por desistir.
Na hora do banho as coisas não corriam lá muito bem. Adorava nadar no mar ou em lagoas mas detestava que lhe dessemos banho de chuveiro ou mangueira. Para minimizar o seu sofrimento começámos a elogiá-lo sempre que ele acabava de tomar banho dizendo-lhe o quanto bonito estava ou como cheirava bem. Isso não o fazia gostar mais desse momento mas passou a passear-se vaidoso pela casa depois do banho, quase sempre à espera dos nossos elogios. Apesar de brincalhão e corajoso, o Guten tinha pavor de trovoada e fogo de artifício. Curiosamente, a maneira de se proteger era meter-se dentro da banheira – sem água, obviamente!
A sua protectora, ou protegida, porque muitas vezes estes papeis confundiam-se, era a mãe. Não era possível, quer estivéssemos em casa ou na Fajarda, ele estar longe dela. Se a mãe estava na cozinha, ele estava deitado perto dela, no chão frio, junto a um armário ou electrodoméstico. Se estava no quarto ele deitava-se na cama ou no tapete junto à mesma. Muitas vezes tentou segui-la até à casa de banho mas nunca levou a melhor. Excepto quando era altura de ele tomar banho, mas desconfio que não deve ter considerado essas situações como vitórias. Tal e qual uma sombra, ora a protege-la, ora a ser protegido por ela.


…E assim se passaram 15 anos em que as nossas vidas foram mais felizes porque as pudémos partilhar com alguém de tão bom coração, forte e corajoso, apesar de pequeno e frágil no início.
Já tenho saudades de chorar ao pé dele. De sentir que por muito grande que tivesse sido o meu erro no trabalho ou no amor, ele continuava a gostar de mim sem me criticar. Do olhar meigo que me fazia sentir melhor e, sempre, sem sequer precisar de falar.
Até já, bom amigo!